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Qualificação ou precarização da extensão? (parte 2)

Por 27 de outubro de 2021Assuntos Gerais

Este é o segundo de dois textos que nosso colega Adolfo Brás Sunderhus escreveu, a partir de um convite para participar de uma live, realizada no último dia 20 de outubro.

Os dois falam sobre a Ater Digital, com a perspectiva de concepções, experiências e propostas no contexto atual. Boa leitura!

Leia a parte 1

 

“(…) a agricultura é uma das palavras mais linda que existe e não significa cultivo somente. Ela envolve uma cultura que tem uma espiritualidade, uma religiosidade, valores e a natureza associada a ela”.

(Sebastião Pinheiro)

Em qual humanismo se encaixa ou se inclui a ATER Digital?

Essa “novidade tecnológica”, como foi a “revolução verde”, afeta e altera de forma significativa o comportamento de agricultores(as), com forte influência nas preferências e demandas dos(as) consumidores(as) na cidade. Não podemos negar que poderá trazer estratégias e ações “certeiras” se observados e respeitados o protagonismo daqueles(as) que serão seus(suas) usuários(as). Um dos grandes desafios que vejo: identificar qual a influência dessas alterações nas pessoas, na roça e na cidade, e permitir que todos e todas tenham acesso de forma equitativa, se assim for possível. Este é outro entendimento que se faz necessário.

Precisamos estar atentos para questões que ainda estão por aí, com um forte e negativo reflexo para a sociedade: terá um propósito coletivo ou estará mais uma vez levando as pessoas a consumirem produtos específicos das corporações econômicas e ligadas aos negócios dos insumos e serviços tecnológicos digitais? Quem realmente vai ganhar com essa “proposta”?

E qual o resultado: será um projeto de desenvolvimento sustentável e coletivo ou será mais uma vez um projeto para o crescimento individual?

Ferramentas como Zoom, Teams e Google Meet são realidades e instrumentos presentes e utilizados no dia a dia. Quais as ferramentas que são utilizadas pela Ater Digital? Será que o(a) agricultor(a) familiar terá que pagar por esses serviços? E quem não puder pagar, será automaticamente excluído do processo? Ou seja, ficará para ele o que nos diz a expressão popular: “vire-se”? Quem perde?

Quero tocar em um exemplo simples, mas de uma grandeza infinita para a agricultura familiar agroecológica: as sementes crioulas, um saber ancestral e que faz parte de uma cultura dos antigos, que está guardada pela palavra, pela comunicação verbal e visual e pelo aprendizado prático, passando este conhecimento e está pratica por gerações. Como a Ater Digital vai se identificar com tudo isso? Ou será que essa cultura (e saber) terá que se adaptar ao momento digital? As sementes transgênicas já são digitais, pop tec transgênicas e estéreis. E as sementes e raças crioulas que podem se reproduzir e viver gerações, onde ficam? O que está sendo pensado pela Ater Digital nesse sentido? Um banco de dados no nosso velho, mais valioso, Excel? É isso? A Ater Digital estará contribuindo para uma nova concentração de conhecimento e poder econômico e político?

A proposta da Ater Digital está só começando. A evolução e a rapidez na utilização dessas ferramentas, que prometem tornar os sistemas agrícolas mais eficientes, sustentáveis e economicamente rentáveis (agricultura de precisão), não são projetos e pensados para que os(as) agricultores(as) familiares tenham acesso, apesar do discurso dizer o contrário, sobretudo em razão de que o investimento necessário para aquisição e implementação dessas tecnologias tem alto custo, sendo inviável ao(à) agricultor familiar, em especial aos(às) jovens.

Incluo, neste momento, o seguinte pensamento: onde está a política pública, as linhas de financiamento para acesso dos(as) extensionistas, que serão os(as) usuários(as) dessa “nova tecnologia” e que não têm orçamento público disponível para trabalhar presencialmente, quanto mais digitalmente? Prover tablets, computadores, celulares, construir grandes plataformas digitais e pensar em Ater Digital? É isso mesmo?

O que se vê é “a vontade a todo custo” por parte do Estado, principalmente o atual, para empreender modificações vantajosas, única e exclusivamente para aqueles(as) que tragam a ele (Estado) vantagens financeiras e políticas imediatas, em detrimento de todo e qualquer estudo mais detalhado de como se inserir a Ater Digital para a agricultura com equidade, com o máximo de igualdade e respeito a todos e todas.

O que podemos até imaginar, sem muito medo de errar, é que o Estado quer economizar em recursos financeiros de pessoal e de infraestrutura sob a capa de uma modernização da agricultura, que não existe e nunca existiu. Afinal, por que pensar na Ater Digital sem termos um sistema público de extensão rural que converse e dialogue com seus beneficiários: extensionistas e agricultores(as) familiares?

A Ater Digital certamente tem sua essência em organizar informações e rapidez em sua “disseminação”. Podem até dizer, em especial por governos sem compromisso com o desenvolvimento sustentável, que a extensão rural não tem todas as respostas. Mas eu digo que ela é a única em exercitar a se dispor e a se comprometer em dialogar para poder começar um novo momento, com um novo olhar para as reais causas e necessidades sentidas, afirmação esta que dispensa e descarta a necessidade de adotar atitudes impulsivas e extremistas de diagnoses e receitas prontas. Pois mudar hábitos e atitudes para construir novos paradigmas exige a presença, e o que parece ser o fim insere-se como o re-começo.

A proposta da Ater digital seguramente não dialoga com a realidade dos(as) extensionistas e da agricultura familiar. Acredito que ela encontre seu porto seguro com as grandes corporações de insumos e venenos, com a agricultura patronal e exportadora do agronegócio e de precisão, resgatando a velha ótica econômica e do lucro pelo lucro, onde perdem-se as relações e os valores sociais, mais uma vez “vendendo” a gestão pública digital de Ater como um “grande negócio” para todos e todas que vivem na roça, como se tudo estivesse a “um clique dos dedos”, como se a agricultura tivesse mudado em sua forma e essência.

A Extensão Rural e a Agricultura Familiar, que dia a dia enfrentam desafios como subsistência, sucessão familiar, posse e luta pela terra, além de desemprego dos(as) jovens da roça, agora terão pela frente o desafio de encarar uma nova realidade que trará uma “nova economia”. E mesmo que tudo que exista possa continuar existindo e certamente assim será, pela era digital tudo será transformado em dados específicos e matemáticos para fazer análises e previsões “do que querem” seus usuários, agricultores(as) e consumidores(as), gestando e criando modelos de regulação de comportamento e consumo para todos e todas, na roça e na cidade.

Ao que se vê, não é ilegítimo pensar e colocar para nossas reflexões que a Ater Digital contribui, sim, diante da natureza do atual governo, para implantar a terceirização dos serviços de Ater, aumentando a precarização do trabalho e permitindo que essa política pública seja violentada por outros processos que não têm o compromisso permanente de estar junto à Agricultura Familiar como tem a Extensão Rural, como tem o(a) extensionista.

Não vejo a proposta da Ater Digital com um compromisso humanista. Não vejo que a Agricultura 4.0 de precisão terá a preocupação central com a produção de alimentos sadios e saudáveis para atender ao mercado interno e com foco no atendimento às necessidades das famílias mais carentes e que estão abaixo da linha da pobreza na roça. Pois está alicerçada em um pensar que historicamente tem como objetivo o aumento da produção e do lucro dos produtos, e não com as pessoas e as relações comunitárias e solidárias.

A transformação não pode ser somente a partir do viés do aumento da produção e do lucro, mas sim pela relação entre as pessoas, de forma presencial, determinando de maneira significativa a capacidade delas trabalharem juntas.

A Ater Digital escreve na história da agricultura, mais uma vez, que aqueles(as) que detém maior poder político, econômico e de negociação serão os(as) favorecidos(as), alimentando o ciclo vicioso dos mesmos “vencedores” de sempre.

Será que a Ater pode se tornar um problema comum entre nós e a todos(as) nós? Será a Ater Digital uma ferramenta difusora? Ao que parece, sim. E vem fortemente revestida por uma natureza excludente, que alimenta e aumenta as desigualdades já existentes.

Nosso comportamento e nossa atitude definiram a sustentabilidade dos serviços de Ater. Precisamos entender e compreender este momento e sua importância para sermos capazes de venceremos todo e qualquer paradigma obscuro e negaconista, criando e fortalecendo nossa musculatura para enfrentarmos o que vier, dure o tempo que for necessário, sempre de forma coletiva, pelos(as) trabalhadores(as) da Ater pública oficial do Brasil.

 

Texto de Adolfo Brás Sunderhus

Engenheiro Agrônomo, extensionista aposentado do Incaper e operário da terra. Aprendendo com as experiências e práticas dos povos da terra da floresta e das águas.

 

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