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Qualificação ou precarização da Extensão? (parte 1)

Por 26 de outubro de 2021Assuntos Gerais, Coluna dos Associados

No último dia 20 de outubro, nosso colega Adolfo Brás Sunderhus participou de uma live cujo assunto foi a Ater Digital. Diante de tal convite, ele organizou seus pensamentos e nos presenteou com dois textos que debatem o tema.

Este é o primeiro deles. O segundo será publicado nos próximos dias. Os dois falam sobre a Ater Digital, com a perspectiva de concepções, experiências e propostas no contexto atual.

Boa leitura!

 

“(…) cure-se com os beijos que o vento te dá e os abraços da chuva. Fique forte com os pés descalços no chão e com tudo que vem dele. Seja cada dia mais inteligente ouvindo sua intuição… Pule, dance, cante, para que você viva mais feliz. Cure-se a si mesmo…, e lembre-se sempre… você é o remédio.”
(Maria Sabina, curandeira e poetisa mexicana)

 

A agricultura acompanha os ciclos da natureza: semente, plantio, germinação, crescimento, florescimento, amadurecimento, produção, colheita, sementes… Um ciclo que se completa, tendo a vida e as pessoas como seu elemento principal.

Sendo esta premissa verdadeira, nada certamente substituirá o olhar atento e crítico do(a) extensionista, que junto com o olhar, com o saber e com a experiência dos(as) agricultores(as) familiares, representa o sucesso para a sustentabilidade da unidade de produção familiar em seu diversificado e multifuncional desenho/arranjo produtivo.

A linha histórica da extensão rural apresenta metodologias que proporcionaram mudanças de comportamentos para agricultura e para todos e todas que dela vivem. Em sua natureza individual, coletiva e de massa, “trabalhou” a difusão do conhecimento com foco no produto e no seu lucro e não nas pessoas; na sua cultura, no seu saber e, muito pouco, na preservação dos recursos naturais e dos ecossistemas de produção. Políticas públicas “renovadoras para uma nova agricultura” foram construídas: crédito rural, insumos modernos – adubos químicos, venenos e mecanização do solo. Todos ditos elementos de transformação pela “revolução verde”.

Hoje vivemos o momento digital. Algo ruim? Um inimigo? Já temos uma história recente, na educação, que mostra seus resultados. Penso que quem trabalha a ferramenta digital para roça tem que sentir toda sua realidade e vivenciá-la. Sentir o que nos fala Maria Sabina, Ana Primavessi, Carporal, Sebastião Pinheiro, Papa Francisco, dentre outros(as). Sem conhecer o cheiro da terra, o poder da semente e das pessoas não conseguirá entender e nem alcançar aqueles(as) que mais precisam. O ser humano não pode esquecer seus valores, sua identidade e seu pertencimento à terra, nem sua ligação direta com a natureza e, de forma alguma, deixar ou se negar a ser o próprio remédio para suas doenças.

Em 2019 a ONU alertou: “o setor agrícola passará por uma revolução digital que será mais transformadora e virá por uma tecnologia que causará efeitos de mudanças e ruptura nos padrões e modelos estabelecidos, rompendo com paradigmas e criando soluções inovadoras para melhorar e transformar a sua vida e de outras pessoas”.

Estamos diante desse alerta, “a era digital” impõe transformações e micro revoluções tecnológicas, “implementando novidades” em todos os setores, inclusive na extensão rural e na agricultura. É possível? Será que conseguimos levar a terra, a roça e o roçado com todas as suas diversidades e relações para dentro de um computador, transformando-o em um sistema alfa-numérico?

Divagando, continuo escrevendo… Computador sente cheiro da terra? Sabe o ponto de maturação da semente? Com toda certeza pode dar a proximidade, mas nunca a realidade do momento efetivo da situação. Portanto, o momento digital para extensão rural certamente que é importante. Não podemos ir contra o desenvolvimento de uma sociedade: temos a telemedicina, as videoconferências, entre outros. Nada disso exclui o toque do médico no paciente, o entendimento in loco da doença. Nada disso exclui ouvir uma testemunha (advocacia) olho a olho. O trabalhador e a trabalhadora da extensão rural pode estar a dezenas/centenas de quilômetros de um(a) agricultor(a) que pode mostrar por celular “uma larva-doença”, mas não a visão holística e as causas que levaram a esta situação, o que pode levar a uma tomada de decisão com erros. Talvez para um atendimento rápido, imediato e de rotina, sim. Mas a agricultura que produz alimento sadio para atender ao consumo interno com segurança alimentar e só isso? Rotina?

Extensão rural é fundamentada em uma ação de diálogo entre conhecimentos e saberes compartilhados, problematizados de forma participativa entre extensionistas e agricultores(as) e sua família, sendo esses últimos protagonistas, donos(as) dessa história, do seu presente e do futuro de todos e todas. Certamente essa “coisa” chamada extensão rural não pode simplesmente ser levada para lá ou para cá, ou ser uma “vídeo chamada”, ou reduzida a uma foto e a uma “receita pronta” enviada por WhatsApp. Certamente isso não é Extensão Rural.

E se assim o for, desrespeita-se o(a) agricultor(a), o(a) extensionista e toda a sociedade, pois o produto-alimento, fruto desta ação pública, chegará a mesa das famílias da cidade. E como chegará? De quem será a culpa do erro quando existir? Da Ater digital? Do(a) agricultor(a)? Do(a) extensionista? Porque, certamente, nunca será daqueles(as) que pensaram essa política pública unilateralmente.

A proposta da Ater Digital do desgoverno federal ouviu a quem? Levou em conta toda construção coletiva de políticas públicas anteriores para Ater e para agricultura familiar (conferências territoriais, estaduais e nacional – CONDRAF)? Ou se instala mantendo a política de interrupção e negação do protagonismo dos movimentos sociais dos povos da terra, da floresta, das águas e das comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas? Esse momento digital seria, sim, saudável e oportuno, se assim o fosse.

A Ater Digital, em sua “ação transformadora e revolucionária”, mais uma vez vem com a velha promessa: “mais eficiência”, “mais produção”, “mais lucro” e se insere de vez no discurso “do agro que é pop e etc”. E já se embala e se fortalece em um “modelo de agricultura” que mais uma vez busca abrir vantagem e se sobrepor à agricultura familiar. O desafio é saber como esse impacto será para a Extensão Rural e para todos e todas que vivem na roça.

Resta saber se a extensão rural e os(as) extensionistas estão preparados(as). O agricultor e a agricultora serão e estão sendo protagonista na construção desse modelo, ou mais uma vez estarão sujeitos a essa “novidade do mercado”? Ao que parece, estamos revivendo com a Ater Digital uma ferramenta difusora; diria que revestida de uma grande suspeita de ser mais uma vez excluidora, aumentando as desigualdades já tão fortemente existentes.

É fato que o acesso à internet aumentou entre 2008 e 2018, tanto no meio rural quanto nas áreas urbanas do Brasil, mas essa desigualdade entre roça e cidade se ampliou. Inclusive o acesso e por uma série de motivos: por ser caro; pelas pessoas não saberem usar, em especial os(as) agricultores(as) mais idosos; e por não terem acesso onde moram. Sem contar que é uma ferramenta essencialmente individual.

A Ater Digital está em pleno crescimento, pois novos instrumentos e ferramentas tecnológicas são pensadas e produzidas, dia a dia, para atender à “realidade” da agricultura e daquele(a) agricultor(a) que tem recursos financeiros suficientes para tê-los.

 

Texto de Adolfo Brás Sunderhus.

Engenheiro Agrônomo, extensionista aposentado do Incaper e operário da terra. Aprendendo com as experiências e práticas dos povos da terra da floresta e das águas.

 

Leia a parte 2

 

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